SOCIEDADE PROTETORA DOS DESVALIDOS

Fonte: Associação Protetora dos Desvalidos - https://spd.org.br/sobre/

Lucas Ribeiro Campos
Universidade Federal da Bahia


Em 16 de setembro de 1832, na capital da Província da Bahia, um grupo de trabalhadores livres e libertos, reunidos na Capela de Nossa Senhora do Rosário dos Quinze Mistérios, localizada na Freguesia de Santo Antônio Além do Carmo, fundou a Irmandade de Nossa Senhora da Soledade Amparo dos Desvalidos. O grupo, que funcionaria como caixa de empréstimos e sistema de penhores, tinha entre seus fundadores pedreiros, marceneiros, calafates, carregadores e trabalhadores ao ganho. Eram todos homens de cor, como se dizia na época.

Por volta de 1848, houve uma cisão entre os membros da Irmandade dos Desvalidos, motivada por divergências em relação ao destino do cofre da instituição. Este conflito, que durou entre os anos de 1848 a 1851, revela a existência de disputas jurídicas entre “irmãos” e “sócios”, em relação à posse do patrimônio material e simbólico construído ao longo das duas primeiras décadas da Irmandade.

No ano de 1851, instalados na Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, que fica no Largo do Pelourinho, alguns desses trabalhadores dissidentes fundaram a Sociedade Protetora dos Desvalidos (SPD). Permaneceram nesta sede até 1868, quando os membros da SPD decidiram mudá-la para um prédio situado à Rua do Bispo, Freguesia da Sé. Em 1887, após nova mudança, a associação passou a se estabelecer na atual sede, em um sobrado azul, no largo do Cruzeiro de São Francisco, região do Pelourinho.

De acordo com seu estatuto de 1874 e reiterado em 1894 – os únicos dessa época que existem até hoje no arquivo da associação –, a SPD admitia como sócios efetivos “todos os cidadãos brasileiros de cor preta”, com o objetivo de auxiliá-los em situações de vulnerabilidade, como doença, invalidez, prisão e velhice. Além disso, os estatutos previam que, diante do falecimento de algum sócio, a associação tinha que promover um funeral digno, com a presença de familiares e associados, prática esta que era herança das antigas irmandades negras. As lideranças da SPD comprometiam-se também com pensões aos dependentes dos sócios, como viúvas, mães ou irmãs, além da supervisão na educação dos órfãos, pois entendiam a importância do acesso à leitura e escrita para o exercício da cidadania.

A história da SPD demonstra que aquele era um espaço político, que proporcionou a muitos trabalhadores a oportunidade de articular e negociar, com políticos baianos, benefícios importantes para a associação e para seus projetos individuais. Os dirigentes da SPD estabeleceram alianças com políticos e figuras influentes, como presidentes de província, senadores, deputados, desembargadores, advogados, militares, médicos e outros, que eram sustentadas através de uma política de favores, acordos e relações de compromisso. Essas estratégias, na maioria das vezes, decidiam as disputas pelo controle da associação, pois aqueles que constituíam alianças mais consistentes com os protetores eram os que estavam mais blindados no poder e permaneciam mais tempo no comando da associação.

Diferente de muitas associações de auxílio mútuo do século XIX, que tinham como elemento principal de identidade o ofício, ocupação ou origem, a SPD manteve uma identificação racial. Com sua instalação em 1851, e depois sua regularização, no ano de 1861, passou a se projetar uma identidade, que no início era constituída pela cor, através de elementos como valorização do trabalho, nacionalidade, [MP1] educação e bom comportamento. À medida que chegava ao fim da escravidão no Brasil, os membros da SPD possibilitaram uma abertura maior para a entrada de novos sócios, aceitando pardos e mestiços, e passou a assumir a ideia de raça como uma categoria mais abrangente de identidade.

Esse processo de construção de uma identidade positiva para os negros, naquele momento, possibilitou que a SPD estabelecesse um projeto de emancipação para um grupo específico de negros, livres e libertos, na Salvador escravista e do pós-abolição. Na agenda política desses trabalhadores de ofício estava a afirmação de cidadania e a luta por direitos, como educação, dignidade, assistência mútua, participação política e pertencimento racial. É bastante simbólico que a poucos metros da Faculdade de Medicina da Bahia, espaço fundamental para a difusão do pensamento racialista no Brasil, no qual prevaleceu o entendimento das diferenças raciais entre brancos e negros, funcionasse e ainda funcione a sede de uma associação negra, como a SPD, que ressignificou a noção de raça e cor de forma positiva, demonstrando uma outra face da resistência negra no Brasil, em que trabalhadores negros foram capazes de pautar suas próprias demandas.

Diretoria de 1932.Fonte: Histórico e Relatório da Sociedade Protectora dos Desvalidos (1934), exercício de 1931-1934, p. 3.
A sala de reuniões em 2019.
Fonte: Histórico e Relatório da Sociedade Protectora dos Desvalidos (1934), exercício de 1931-1934, p. 13.
A sala de reuniões em 2019.
Crédito: Lucas Campos.

Para saber mais:

BRAGA, Júlio. Sociedade Protetora dos Desvalidos: uma irmandade de cor. Salvador: Ianamá, 1987.

CAMPOS, Lucas R. Sociedade Protetora dos Desvalidos: mutualismo, política e identidade racial em Salvador (1861-1894). Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Salvador, 2018.

CARMO, Emerson Cláudio Cordeiro do. Memória e associativismo mutualista em Salvador: um estudo centrado na Sociedade Protetora dos Desvalidos. Dissertação (Mestrado) – Universidade do Estado da Bahia, Departamento de Educação, Alagoinhas, 2019.

GALVES, Charlotte; LOBO, Tânia (Orgs.). O português escrito por afro-brasileiros no século XIX: as atas da Sociedade Protetora dos Desvalidos. Salvador: EDUFBA, 2019.

LEITE, Douglas Guimarães. “Mutualistas, graças a Deus”: identidade de cor, tradições e transformações do mutualismo popular na Bahia do século XIX (1831-1869). Tese (Doutorado) – Universidade de São Paulo, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, São Paulo, 2017.

OLIVEIRA, Klebson. Negros e escrita no Brasil do século XIX: sócio-história, edição filológica de documentos e estudo linguístico. Tese (doutorado) – Universidade Federal da Bahia, Instituto de Letras, Salvador, 2006.

REIS, Lysie. A liberdade que veio do ofício: práticas sociais e cultura dos artífices na Bahia do século XIX. Salvador: EDUFBA, 2012.