Ladeira da Praça

esquerda do sobrado, a ladeira da Praça, onde teve início o levante de 1835. Notar em frente ao sobrado carregadores de cadeira, muitos dos quais participaram do levante. Carvão de Octavio Torres (1946).

João José Reis

Universidade Federal da Bahia


A Ladeira da Praça representa um importantíssimo episódio do levante conhecido como Revolta dos Malês. Em um sobrado de dois andares, o de número 2 na ladeira da Praça, dezenas de africanos estavam reunidos na madrugada do dia 24 para 25 de janeiro de 1835. Ali combinavam os últimos detalhes para a revolta. Conforme os planos, restavam três a quatro horas para se levantarem em armas. Foram interrompidos pela chegada dos juízes de paz da freguesia da Sé e suas patrulhas. A revolta começaria antes da hora marcada.

A reunião acontecia precisamente na “loja” do sobrado (espécie de subsolo que pode ser visto ainda hoje em casarões antigos de Salvador, com janelinha ou “óculos”, geralmente ovais ou redondos, gradeados, que dão para o nível da calçada). As lojas eram típicas senzalas urbanas, porões com pouca ventilação, pouca luz. Ali viviam dois africanos libertos, que haviam sublocado o local do alfaiate mulato Domingos Marinho de Sá. Os africanos eram Manoel Calafate e Aprígio, ambos nagôs. O primeiro era mestre malê, um muçulmano letrado que estava entre os principais líderes do movimento. Era respeitosamente chamado “Pai Manoel” por seus discípulos, o que indicava ser homem de idade em 1835. Mais jovem, Aprígio era carregador de cadeira e vendedor de pão, também versado em árabe, reunia em seu local de trabalho “outros de sua Nação [...] aos quais ensinava a escrever”, como relatou uma testemunha durante o inquérito que se seguiu à derrota do levante. Vários malês - nagôs islamizados - moravam naquela vizinhança.

Quando foram surpreendidos pela polícia, os malês celebravam uma das principais festas que precedem o final do Ramadã. Os policiais estavam prestes a arrombar a porta da loja quando ela foi subitamente aberta para dar passagem a um número estimado entre cinquenta e sessenta africanos, que saíram atirando, agitando suas espadas, aos gritos de “mata soldado” e palavras de ordem em língua iorubá. Outro grupo escapou ao cerco pulando o muro do quintal. Posteriormente, foram aí encontradas 12 bainhas de espada vazias. 

Uma primeira batalha teve lugar em frente ao sobrado da ladeira da Praça. Embora uns ali tombassem, os rebeldes desbarataram seus surpresos adversários, coisa que se repetiria várias vezes nas ruas de Salvador naquela noite. Mais tarde se descobriu que apenas dois soldados tinham suas espingardas carregadas e prontas para atirar. É como se todos ainda duvidassem da possibilidade de um levante africano em pleno coração de Salvador. Aqui na ladeira, os insurgentes feriram pelo menos cinco pessoas, um soldado permanente foi mortalmente atingido. Do lado rebelde, um africano foi abatido com um tiro na cabeça por um soldado permanente, e outro morto a cacetadas. 

Os rebeldes saídos da casa de Manuel Calafate se dividiram em vários grupos. A maioria seguiu ladeira acima em direção à praça do Palácio (atualmente Praça Municipal, oficialmente Tomé de Souza), localizada a pouca distância, no topo da ladeira. Tentaram em vão libertar um mestre muçulmano ali preso. Os outros seguiram rumos diferentes tomando as Ruas dos Capitães, Pão de Ló e Ajuda. Esses grupos percorreram a cidade batendo nas portas e janelas das casas, avisando os companheiros sobre a precipitação dos planos, e chamando os africanos para a guerra.

Por que não mudar o nome Ladeira da Praça para Ladeira dos Malês?

Para saber mais sobre essa insurreição, leia o verbete sobre o Levante dos Malês.

Na primeira foto um sobrado baiano com loja embaixo, na seguinte a visão de dentro da loja. Fotos de Mariângela de Mattos Nogueira, em: REIS, João José. Rebelião escrava no Brasil: A História do Levante dos Malês em 1835. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

Para saber mais:

João José Reis. Rebelião escrava no Brasil: A História do Levante dos Malês em 1835. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.