O HAUSSÁ ELESBÃO DO CARMO

João José Reis

Universidade Federal da Bahia


No bairro de Armação, na orla de Salvador, existe uma rua chamada Elesbão do Carmo. Um dos africanos presos por suspeita de participação na Revolta dos Malês, em 1835, Elesbão era um liberto haussá, portanto oriundo do Sudão Central, região ao norte da atual Nigéria. Os haussás eram muçulmanos, assim como os malês, e a maior parte deles chegou à Bahia como consequência do jihad (guerra santa) lançado por muçulmanos puristas da etnia fulani que, a partir de 1804, sob a liderança do clérigo Usuman dan Fodio, fustigou o país haussá. Embora também fossem muçulmanos, ou mussulmis, como os haussás islamizados se chamavam, isso não impediu que fossem capturados e deportados aos milhares a bordo dos navios negreiros para a Bahia. Isso porque, os fulanis consideravam-nos muçulmanos pouco ortodoxos e, portanto, passíveis de escravização.

Os haussás foram a liderança do ciclo de revoltas que assolaram a Bahia durante as primeiras décadas do século XIX, em Salvador e no Recôncavo. Talvez por isso, e por sua fama de letrados nos conhecidos “papeis árabes”, é que os contemporâneos tenham sugerido que os haussás acompanharam os nagôs na conspiração de 1835. Mas, aparentemente, depois das muitas tentativas de revolta, naquela altura a maioria dos haussás tinham desistido da luta armada, inclusive seus mestres religiosos. Ainda assim as forças policiais prenderam 31 haussás durante a repressão que se seguiu à Revolta dos Malês. Desses 31, no entanto, apenas três foram sentenciados. Entre os haussás implicados estava Dandará, ou Elesbão do Carmo, seu nome em “terra de branco”. Ele foi o único desse grupo diretamente acusado de ser mestre – e o único a admitir sê-lo, atividade que exercia já na África. Era, portanto, um malam, equivalente haussá aos alufás dos nagôs.

Como bom mestre, Dandará reunia seus discípulos para oferecer instrução religiosa. Uma testemunha garantiu que o malam promovia orações coletivas duas vezes ao dia, provavelmente no mercado de Santa Bárbara, onde tinha uma loja na qual vendia fumo. Foi lá que, durante uma batida, os policiais encontraram artigos religiosos e, entre eles, alguns papeis malês. Uma testemunha afirmou ainda tê-lo visto retirando de sua venda uma caixa cheia de papeis. Além do mercado, outro espaço de instrução era sua casa, no Caminho Novo do Gravatá, onde Dandará reunia homens e mulheres. Além de atuar em Salvador, Dandará pode ter sido um divulgador do Islã no Recôncavo, para onde sempre viajava a negócios.

Mercado de Santa Bárbara, onde Dandará atuava como negociante de fumo e mestre malê.

Nagôs e haussás tinham mestres entre seus parentes de nação, mas Dandará parecia uma exceção. Algumas testemunhas afirmaram que Dandará tinha discípulos nagôs. Um crioulo liberto, por exemplo, afirmou que na loja de Dandará reuniam-se tanto nagôs quanto haussás. E alguns vizinhos do malam confirmaram essa informação. Além de nagôs e haussás, pelo menos um membro de outro grupo étnico tomava lições com o mestre muçulmano: o ganhador Domingos, bariba (de origem Borgu, na fronteira do país haussá), participante da revolta malê, afirmou que “também aprendia com Dandará”.

Alguns africanos denunciaram o malam como membro importante no movimento. Um escravizado de nação congo afirmou que “o preto Elesbão do Carmo é que é Capitão deste partido, que ele Respondente tem ouvido falar muito dele”. Mas Dandará negou participação no levante. Não que fosse acomodado. Pesava sobre ele a acusação de participação em revoltas anteriores, aquelas protagonizadas pelos haussás, mas “por ser esperto sempre escapou de ser preso”, segundo uma testemunha. Mas em 1835 fazia questão de mostrar que tinha pouca proximidade com os nagôs, mentores do movimento. Disse que alugava um casebre no mercado de Santa Bárbara para vender fumo e “para estar com seus parentes”, outros haussás. Afirmou ainda ser visitado por seus amigos e “parentes”, novamente descrevendo os contornos étnicos de sua sociabilidade. Por fim, disse que não participou do levante, entre outras razões, “porque é de outra nação”, diferente dos nagôs. Estaria apenas tentando salvar a pele ou sugerindo um racha étnico entre os muçulmanos? Provavelmente ambos, mas a atuação desse mussulmi talvez nem fosse o melhor exemplo desse racha, como vimos acima. Pesava sobre ele a acusação de guardar em sua loja várias armas, supostamente aquelas utilizadas pelos combatentes de 1835, armas que não foram, contudo, encontradas pela polícia quando revistou a sua loja e sua casa.

Há um silêncio na documentação sobre o destino de Dandará. Sua companheira, Emerenciana, haussá como ele, foi acusada de distribuir anéis malês, fato por ela negado. Mas seu nome consta tanto no libelo acusatório quanto da lista dos indiciados por insurreição. Terminou condenada a quatrocentos açoites. Elesbão, por sua vez, foi preso e interrogado duas vezes, mas seu nome não aparece no libelo acusatório. Aparece, sim, no Rol dos Culpados, mas o campo reservado para registro de sua sentença está vazio. Ou seja, não sofreu qualquer pena. A partir dai ele desaparece misteriosamente da documentação. É possível que Dandará fosse um líder religioso haussá dissidente que, diferente de seus confrades mussulmis, resolveu apoiar o movimento comandado pelos malês.

A rua Elesbão do Carmo no bairro de Armação em Salvador.

Para saber mais:

Luciana da Cruz Brito. Temores da África: segurança, legislação e população africana na Bahia oitocentista. Salvador: EDUFBA, 2016.

João José Reis. Rebelião escrava no Brasil: A História do Levante dos Malês em 1835. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.