ESTAÇÃO DA CALÇADA*

Foto de época da Estação da Calçada em construção, sua estrutura já está pronta, mas o prédio encontra-se rodeado por andaimes de madeiras, grupos de trabalhadores negros podem ser vistos na entrada do prédio em reunião, e outros dois no telhado, no canto da foto uma negra levando um volume na cabeça passa ao largo

Robério S. Souza

Universidade do Estado da Bahia - Campus I


Os caminhos de ferro são antigos na Bahia, datam dos primórdios da segunda metade do século XIX. A primeira ferrovia – Bahia and San Francisco Railway­ – começou a ser construída em 1858, com o traçado que partia de Salvador em direção ao interior. Esse empreendimento demandou muitos recursos financeiros, além do engajamento de uma multidão de homens imigrantes e nacionais livres, libertos e escravizados. Naqueles tempos, as máquinas, instrumentos de trabalho, ferragens, entulhos ou a presença dos operários de construção logo passaram a compor e alterar o cotidiano e a fisionomia do local onde as obras começavam. Dentre estas, a então monumental Estação da Calçada, onde começava a linha do trem.

Erguer aquele imponente edifício exigiu não só a supervisão de engenheiros, mas, sobretudo, muito suor de seus trabalhadores, que se desdobravam nas escavações, nos serviços de terraplanagem, remoção de entulhos, preparação de massa de concreto, na carpintaria, fundição, alvenaria, entre outros. Alguns trabalhadores arriscavam suas vidas pendurados entre as ferragens, montando a pesada estrutura metálica ou os suportes necessários para a elevação do prédio. Não por acaso, aquele foi o cenário de diversos acidentes de trabalho. Às 3 horas da tarde de 12 de janeiro de 1861, por exemplo, uma das arcadas de ferro da parte que integrava as paredes do edifício desabou, tirando a vida de José Maria, além de ferir gravemente outros trabalhadores.

Localizada na zona limítrofe da área urbana de Salvador, a Estação da Calçada se tornaria assim “a principal edificação da Bahia and San Francisco Railway­ e a mais importante estação de quase todas as ferrovias que viriam ser construídas na Bahia”. Destinada ao transporte de passageiros e mercadorias, a Estação também se tornou um espaço fundamental de trabalho e trânsito para seus trabalhadores.

Em 1909, os trabalhadores ferroviários da Bahia and San Francisco Railway­ protagonizaram um dos mais importantes movimentos grevistas da Primeira República. Na imprensa da época circularam as primeiras notícias da insatisfação entre os operários da Estação da Calçada. Longas jornadas de trabalho, esquema clássico da exploração da classe trabalhadora, seriam o estopim da parede. Os trabalhadores também denunciavam os baixíssimos salários e as constantes multas e transferências, prejudicando a sua vida familiar e afetiva.

Essas foram as principais razões para que aqueles homens dessem início a uma onda grevista que se espalhou ao longo da linha do trem, tirou o sossego das elites e abalou a ordem pública baiana. No calor da greve, os trabalhadores da Estação da Calçada montaram uma comissão central encarregada de negociar com os patrões, além de usarem os telégrafos da estação para se comunicarem com as comissões setoriais nas cidades e vilas do interior, com vistas a debater a pauta de reivindicações e construir coletivamente o movimento.

Os patrões e as autoridades baianas sabiam desde cedo que a Estação da Calçada, juntamente com a de Periperi, à aproximadamente onze quilômetros dali, constituíam o front da resistência em Salvador. Assim, sob o argumento do restabelecimento da ordem pública, conseguiram que, durante uma madrugada, a polícia fosse designada para arrancar das mãos dos trabalhadores as duas estações. Na tentativa de inviabilizar a comunicação entre os núcleos grevistas pelo telégrafo, a polícia encarcerou o telegrafista da Estação da Calçada, Domingo Gusmão. Além de aplicar demissões exemplares, os patrões tentaram impor fura-greves, quando não usaram da coação e violência física para forçar o fim da greve.

A intransigência e as arbitrariedades praticadas pelos administradores da estrada de ferro aumentaram a insatisfação dos trabalhadores fazendo com que o movimento ganhasse força. Não foi à toa que, na calada da noite, os grevistas executaram o plano de tomar as locomotivas desde a estação da Calçada até Periperi, conduzindo-as para Alagoinhas, um dos núcleos grevistas no interior do Estado. Tropas foram enviadas para tentar recuperar as locomotivas, que só foram entregues após o presidente da República nomear um interventor federal nas estradas de ferro da Bahia, fragilizando o poder dos arrendatários. Assim, as negociações foram retomadas e, aos poucos, o movimento foi suspenso.

Quase duas décadas depois, a Estação da Calçada ainda era um espaço importante de organização dos ferroviários. Em 1927, ao tomar conhecimento de mobilizações operárias em Sergipe, os trabalhadores reuniram-se na Estação da Calçada e declararam-se em greve, fazendo com que os patrões acionassem as forças policiais. Hoje em dia, a Estação da Calçada ainda permanece de pé, servindo de local de embarque e desembarque dos trens de passageiros oriundos ou com destino ao subúrbio ferroviário, em Salvador. Além de ter sido local de relações opressivas de trabalho, a Estação da Calçada se constituiu para os trabalhadores como um lugar de memória de suas lutas.

*Texto originalmente publicado para a série Lugares de memória dos Trabalhadores, do Laboratório de Estudos de História dos Mundos do Trabalho da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Republicado, aqui, com autorização do autor e do LEHMT-UFRJ.

Leia mais:

Etelvina Fernandes. Do mar da Bahia ao Rio do Sertão. Salvador: Secretaria da Cultura e Turismo, 2006.

Mário Augusto da Silva dos Santos. A República do povo: sobrevivência e tensão: Salvador (1890-1930). Salvador. EdUFBA, 2001.

José Raimundo Fontes. Manifestações operárias na Bahia: O movimento grevista. 1888-1930. Salvador: UFBA, 1982. (Dissertação de mestrado).

Robério Santos Souza. Trabalhadores dos trilhos: imigrantes e nacionais livres, libertos e escravos na construção da primeira ferrovia baiana (1858-1863). Campinas: Editora da Unicamp, 2015.

Robério Santos Souza. Tudo pelo trabalho livre: trabalhadores e conflitos no pós-abolição. Salvador: Edufba, 2011.


Crédito da imagem: Fachada frontal da Estação de Jequitaia (Calçada). Fotógrafo: Benjamin R. Mulock, Bahia, 5 jun. 1861. Collection Vignoles of Institution of Civil Engineers, London, ICE ACC 1335.