TREZE DE MAIO

Iacy Maia Mata

Universidade Federal da Bahia


O Brasil foi o último bastião da escravidão nas Américas. Estudos apontam que em 1886-87 na província da Bahia viviam 76.838 cativos ou cerca de 10% de toda a população escrava do país. Os proprietários baianos se aferraram ao trabalho escravo até “as vésperas da abolição”. A maioria das grandes fazendas mantinha ainda os cativos como mão de obra fundamental. Muitos daqueles escravocratas baianos foram surpreendidos pela lei que aboliu de forma imediata e incondicional a escravidão. Alguns consideraram a abolição “um ato arbitrário da representação nacional”. Sabiam das discussões no parlamento mas não imaginavam que seria aprovada a abolição sem uma lei que obrigasse os libertos a trabalhar.

É que a lei de 13 de maio significou uma ruptura na estratégia de emancipação gradual adotada pelo Brasil. A Lei do Ventre Livre, de 1871, garantia poder senhorial sobre os ingênuos até 21 anos e a Lei dos Sexagenários, de 1885, previa 13 anos para a extinção da escravidão. A chamada Lei Áurea foi aprovada às pressas, em resposta à deserção dos escravos das fazendas e ao movimento social de massa que o abolicionismo se tornou. É a única lei sobre a matéria que possui apenas dois parágrafos – um extinguindo a escravidão e o outro revogando as disposições em contrário. Não previa, como queriam os proprietários de escravos, indenização ou dispositivos que forçassem os libertos a permanecer trabalhando nas fazendas.

Na Bahia, a aprovação da abolição provocou diferentes reações. Muitos proprietários ficaram em choque, não só pela abolição, mas também pelas atitudes de autonomia e independência dos libertos no imediato pós–abolição. Para muitos ex-cativos, a extinção da escravidão ensejaria também o acesso à terra e o fim de hierarquias raciais. Um subdelegado escreveu informando que “o contágio das ideias perniciosas do comunismo queria surgir de chofre no distrito, depois da Lei Áurea”. Circularam várias notícias de invasão de terras, em geral pertencentes ao ex-senhor. Como nos Estados Unidos, aqui uma das expectativas de liberdade era possuir um pedaço de terra para plantar - “a distribuição de terra parecia ser uma consequência lógica da abolição”. Para muitos, ser livre significava trabalhar para si (na sua própria terra, na pesca, no trabalho ambulante), garantindo o controle sobre o tempo e o ritmo do trabalho. Vender a força de trabalho por um módico salário em condições semelhantes às vivenciadas no cativeiro pode não ter sido o sonho de liberdade dos egressos da escravidão. O que explica um pouco a momentânea “perturbação”/desorganização do trabalho no imediato pós-abolição; alguns engenhos não concluíram a safra porque muitos libertos abandonaram as fazendas - se recusavam a trabalhar nos mesmos moldes da escravidão. Muitos se dirigiram para Salvador, Santo Amaro e Caravelas logo após a aprovação da lei - “na cidade, a liberdade é mais livre”.

Os anos de 1888 e 1889 foram marcados por conflitos entre ex-senhores, polícia e libertos e também por protestos e resistência individual dos ex-cativos que se expressaram no que os fazendeiros e autoridades chamaram de “desobediência e insubordinação”. As festas dos 13 de maio, em especial, tornaram-se objeto da atenção policial; vistas como espaços de desordem e confusão, aí se materializaram desafio a ex-senhores e autoridades locais. A festa tornou-se então um meio de protesto político em uma conjuntura de extrema politização e disputas sobre os significados que a liberdade deveria assumir.

No pós-abolição, a Bahia experimentou a “politização da vida cotidiana” e os chamados 13 de maio disputaram palmo a palmo os significados da liberdade. Um liberto no sul da Bahia estava na porta de casa falando impropérios contra as autoridades e gritando para os policiais “que podia fazer o que quisesse, pois era livre”. Foi preso, mas não deixou por menos. Entrou com um processo judicial contra a prisão ilegal. Esses protestos e pequenas rebeldias dos libertos, a micropolítica do cotidiano, como resistir à prisão, afirmar-se livre, admoestar publicamente conhecidos escravocratas, assumir filiação partidária, questionar prisões arbitrárias ensejaram batalhas políticas e judiciais que desafiaram os limites da liberdade, e forjaram percepções de direito e cidadania no pós-abolição.


Leia mais:

Bert J. Barickman. “'Até a véspera': o trabalho escravo e a produção de açúcar nos engenhos do Recôncavo baiano (1850-1881)”. Afro-Ásia, nº 21-22 (1998-99).

Dale T. Graden. From Slavery to Freedom in Brazil. Bahia, 1835-1900. Albuquerque: University of New Mexico Press, 2006.

Eric Foner. “O significado da liberdade”. Revista Brasileira de História, nº 8 (1988).

Eric Foner. Nada além da liberdade: a emancipação e seu legado. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.

Flávio dos Santos Gomes. “‘No meio das águas turvas’: raça, cidadania e mobilização política na cidade do Rio de Janeiro – 1888-1889”, in Flávio dos Santos Gomes e Petrônio Domingues (orgs.). Experiências da emancipação: biografias, instituições e movimentos sociais no pós-abolição (1890-1980). São Paulo: Selo Negro, 2001.

Flávio dos Santos Gomes. “No meio das águas turvas (Racismo e Cidadania no Alvorecer da República: a Guarda Negra na Corte – 1888-1889). Estudos Afro-Asiáticos, nº 21 (1991).

Iacy Maia Mata. “Os ‘treze de maio’: ex-senhores, polícia e libertos na Bahia pós-abolição”. Dissertação de Mestrado (História Social), Universidade Federal da Bahia, 2002.

Iacy Maia Mata. “Libertos de 13 de maio e ex-senhores na Bahia: conflitos no pós-abolição”. Afro-Asia, nº 35 (2007), pp.195-196.

Jailton Lima Brito. A Abolição na Bahia (1870-1888). Salvador: Centro de Estudos Baianos da UFBA, 2003.

Walter Fraga Filho. Encruzilhadas da liberdade: histórias de escravos e libertos na Bahia (1870-1890). Campinas-SP: Editora da Unicamp, 2006.

Wlamyra Ribeiro de Albuquerque. O jogo da dissimulação: abolição e cidadania negra no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.