Balthazar de Aragão, O Bângala

Na gravura de Hans Sebald Beham, um capitão anônimo do século 16 com o seu bastão, tão caracteristico d'O Bângala.Fonte: rijksmuseum.nl/en/collection/RP-T-00-687, domínio público.

Irene María Vicente Martín

European University InstituteMauritshuis Museum

A Rua do Bângala situa-se num dos distritos criados atrás da Cidade Alta, como resultado do movimento populacional para o interior após os ataques inimigos de 1600, e urbanizados nos anos 1940 sob o nome de Nazaré (ou Mouraria). Seu nome remete à história do capitão, senhor de engenho e proprietário de escravos Balthazar de Aragão, O Bângala, nascido na Ilha da Madeira, em 1564, e morador em Salvador de 1599 até sua morte, em 1614. A data em que a rua foi oficialmente nomeada como tal é desconhecida, mas registros seculares, como os do Livro de Batismo da Conceição da Praia (1824-1834), contêm documentos de 1825 que mencionam uma “Rua do Bangla” (f. 82v) situada nesse bairro. É sabido que Balthazar de Aragão frequentou essas paragens em vida, pois de acordo com A. Valle Cabral, “construiu na esquina da rua um solar”, possivelmente o único de pedra e cal da região, que acabou-se tornando referência para identificar o espaço (“Vou na rua do Bangla/ onde mora o Bangla”). O mesmo historiador informaria depois que foi aí onde o capitão “viveu vida fastuosa”, acrescentando depois que “lhe foi dado substituir o governador geral” (CABRAL 1952:485-490).

Esta observação do Valle Cabral é um bom resumo dos dois atributos que marcaram a vida d’O Bângala em Salvador: a ostentação das riquezas, sob a forma de festas com seus inúmeros escravos nas suas fazendas, e o interesse pelas tarefas do governo, dada sua experiência anterior como capitão-mor em Angola. Os documentos mais antigos em que Bathazar de Aragão aparece permitem inferir que, na África, partilhou da “perseguição e escravização da raça negra”, sendo “a crueldade com que tratava os escravos, que castigava com grande rigor”, a causa da sua saída de Luanda em fins de 1599. Entretanto, ele desfrutou do apoio dos Governadores de Angola Paulo Dias de Novais (1575-1589) e João Furtado de Mendonça (1595-1602), que lhe deram o comando das expedições ao rio Bungo (hoje, o rio Lungwebungu, na fronteira com Zâmbia), onde chegou a capturar mais de 1.400 africanos. Foi possivelmente num desses percursos que Balthazar de Aragão ganhou a sua tão característica alcunha (O Bângala, em português, ou Bangalambata, nos registros africanos), que parece vir da força do seu bastão (bengala) com o qual governou energicamente os angolanos, primeiro, e seus escravos na Bahia, depois (CORREIA 1937; CALMON 1985).

O Bângala já morava em Salvador em fins da década de 1590. Depois de ser demitido de seu cargo na África, se estabeleceu na Bahia, possivelmente entre a Cidade Alta e o norte dela, onde tentou continuar com sua atividade escravista. No ano de 1599, as fontes fazem menção a seu casamento com Maria de Araújo, neta de Caramuru e herdeira do fazendeiro Francisco de Araújo. A família da esposa possuía, entre outros bens, umas fazendas perto do rio Paraguaçu desde 1587, que depois se tornaram propriedade do novo membro da família. Assim, em 1609, O Bângala já contaria com um engenho na foz daquele rio, ao qual, pouco tempo antes, tinha adicionado um engenho novo em Mataripe (VARNHAGEN, SOUSA 1851:153).

É nesse período que o viajante francês Pyrard de Laval, que passou dois meses na Bahia em 1610, conta como veio a conhecer um conterrâneo de Marselha declarado servidor de “um dos maiores senhores daquela terra, a que chamavam Mangue la bote, nome que os negros de Angola lhe haviam dado [...] porque o temiam”. O testemunho do criado, que Rodolfo Garcia conseguiu identificar como servente d’O Bângala, dá mais informações sobre o capitão, tanto em termos de sua riqueza e engenhos, quanto da posse de escravos. É através dele que se sabe que O Bângala, entre outras excentricidades, possuía uma banda de música sob a direção e ensino do servo francês, composta “de vinte ou trinta escravos, que todos juntos formavam uma consonância de vozes e instrumentos que tangiam sem cessar” (RIVARA, LAVAL 1944:278-279). Essa banda seria a que, segundo E. Torinho, “alegrava o engenho de Mataripe” (TOURINHO 1964:267) , mostrando uma realidade da escravidão pouco conhecida: os escravizados, além de trabalhadores do campo, empregados domésticos, ou tratadores de animais, foram utilizados no Brasil seiscentista como animadores para o entretenimento de seus donos e proprietários, sendo assim despojados das suas danças e cantos e forçados a tocar peças ao estilo europeu.

O destino desses músicos escravos não aparece nas fontes, mas é possível que os herdasse o filho d’O Bângala, também capitão, após a morte do pai em 1614. No ano anterior, 1613, O Bângala tinha se integrado na junta interina de governo que se formou em Salvador. Na ausência do Governador-Geral Gaspar de Sousa, que estava em Olinda, este comitê assumiu a responsabilidade pelo governo do Estado do Brasil, sendo O Bângala o encarregado de construir fortes, recrutar soldados e armazenar munições necessárias para defender Salvador em caso de ataques estrangeiros. É possível que ele estivesse concentrado nisso quando, em 24 de fevereiro de 1614, embarcações inimigas entraram pela Bahia de Todos-os-Santos. Saindo ao mar para os deter, a embarcação d’O Bângala virou, matando-o afogado com seus vinte escravos de escolta (CALMON 1985:173-175; CASCUDO 1968:45).

O alvoroço que a morte d’O Bângala gerou na cidade mostra a proximidade de muitos habitantes com o capitão, a quem não podiam mais requisitar a construção de fortes nem acompanhá-lo em suas festas animadas por escravos. Na carta enviada ao monarca para informar o acontecido, os vereadores da Câmara reconheceram, junto com o excelente serviço do capitão, a dor que todos os cidadãos, cada vez mais envolvidos no tráfico escravo, estavam sofrendo. Em suas palavras, a morte d’O Bângala “nos tocou a todos” e foi, enfim, “uma grande perda desta terra”. Por um lado, Balthazar de Aragão havia se tornado membro de uma das famílias mais antigas de Salvador, e a tinha defendido contra os corsários. Mas havia se tornado também referência pública de um modo de vida que, baseado nos latifúndios e na escravidão, muitos aspiraram a ter. Foi graças a estes expedientes, afinal, que um capitão expulso de Angola conseguiu chegar, no espaço de dez anos, ao governo interino da cidade de Salvador, e do Estado do Brasil.


Notas:

As informações sobre as atividades d’O Bângala em Angola são escassas e às vezes contraditórias. Isto se deve ao fato de que, desde 1590, outro português chamado Baltasar Rabelo de Aragão, fundador do primeiro presídio de Angola e também escravagista, morava em Luanda. No entanto, nos documentos sobre este Rabelo não há quaisquer indicações dele viajar ao Brasil, o que, por agora, nos impede identificar ambos como sendo a mesma pessoa. FELNER, Alfredo de Albuquerque, Angola: Apontamentos sobre a ocupação e início do estabelecimento dos portugueses no Congo, Angola e Benguela, Imprint: Lisboa, 1933, p. 112; História de Angola, Editorial Atica, Lisboa, 1937, p. 216.

Fontes:

‘Correspondência de Diogo Botelho’, em Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, v. 73, pt. 1 (1910).

AHU, Bahia-Luiza Fonseca, Cx1. Doc. 58, fols. 1 y 1v. ‘Carta dos oficiais da Câmara da Bahia ao rei [D. Filipe II], contando o desastado sucesso do capitão-mor Baltazar de Aragão’, a 13 de março de 1614.

CALMON, Pedro, Introdução e notas ao Catálogo Genealógico das Principais Famílias de Jaboatão, Salvador, Empresa Gráfica da Bahia, 1985, vol. I.

CASCUDO, Luis da Câmara, História da alimentação no Brasil, História da alimentação no Brasil, São Paulo, Companhia Editoria Nacional, 1968.

Documentos Históricos do Arquivo Municipal: Atas da Câmara, Salvador, Prefeitura Municipal, 6 vols. (1625-1700), 1950, vol. I.

MELLO, José Antônio Gonsalves de, A Relação das Praças Fortes do Brasil (1609) de Diogo Campos Moreno, Revista do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano. v. LVII (1984), p. 177–246

RIVARA, Joaquin Heliodoro da Cunha (Trad.); LAVAL, Francisco Pyrard de, Viagem de Francisco Pyrard de Laval: contendo a notícia de sua navegação às Índias Orientais, Porto, Livraria Civilização, 1944, vol. I.

SALVADO, João Paulo; MIRANDA, Susana Münich (Eds.), Cartas para Álvaro e Gaspar de Sousa (1540-1627), Lisboa/Rio de Janeiro, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 2001.

VARNHAGEN, G. A. (Ed.); SOUSA, Gabriel Soares de. Tratado descritivo do Brasil em 1587, obra de Gabriel Soares de Souza, senhor de engenho na Bahia e nela residente dezessete anos, seu vereador da câmara, etc.: Edição castigada pelo estudo e exame de muitos códices manuscritos existentes no Brasil, em Portugal, Espanha e França, e acrescentada de alguns comentários à obra por Francisco Adolpho de Varnhagen. Segunda edição mais correta e acrescentada com um adiantamento. Rio de Janeiro, Tipografia Universal de Laemmert, 1851.

______, História Geral do Brasil antes de sua separação e independencia de Portugal (anotado por Rodolfo Garcia), São Paulo, Editora Proprietaria Companhia Melhoramentos de SP, 1927.


Leia mais:

CABRAL, Alfredo Valle, ‘Os nomes da ruas contam história’, em Revista do Instituto Geografico e Historico da Bahia, v. 77, (1952).

TINHORÃO, José Ramos, Os sons dos negros no Brasil: cantos, danças, folguedos e origens, São Paulo, Editora 34, 2008,

TOURINHO, Eduardo, Esse continente chamado Brasil, Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editôra, 1964.

CORREIA, Elias Alexandre da Silva, História de Angola, Editorial Atica, Lisboa, 1937.