QUARENTENA DE ESCRAVIZADOS

Vista da Ponta de Humaitá, em Monte Serrat, uma das regiões que abrigaram escravizados em quarentena. Crédito da imagem: Portal da Copa (victoria.camara) (https://creativecommons.org/licenses/by-sa/3.0).


Cândido Domingues

Centro de Humanidades/Nova de LisboaPrograma de Pós-Graduação em História/UFBAUniversidade do Estado da Bahia - Campus IV

Mariana Dourado

PPGH-UNEB, Campus II

Entre 9 de dezembro de 1802 e 20 de novembro de 1828 entraram na Baía de Todos-os-Santos 207 navios negreiros chegados da costa africana. Noventa e um deles, após visitados pelos funcionários da Câmara de Salvador, foram encaminhados para quarentena por trazerem pessoas escravizadas doentes.

Qualquer embarcação configurava um pequeno universo concentrado de doenças. Era comum ficarem meses em alto mar enfrentando intempéries, sem água ou comida frescas. Sua população era composta de alguns marinheiros trabalhando pesado, poucos passageiros e a maioria de africanos escravizados e acorrentados a ferros nos porões dos tumbeiros.

Tão logo uma embarcação chegava ao porto, os órgãos responsáveis deveriam analisar a carga, para cobrar os impostos, e a tripulação para conferir as condições de saúde, evitando, assim, a entrada de doentes na cidade. De todos os navios, aqueles chegados da África eram os mais perigosos à saúde de cidades e vilas portuárias, um reflexo da própria natureza de seu comércio. Pessoas presas fazendo suas necessidades em um espaço exíguo, sem ventilação e úmido. Estas condições foram destacadas por Luís dos Santos Vilhena no final do século XVIII como promotoras desse perigo sanitário. Um verdadeiro inferno Atlântico!

Em Salvador, segundo maior porto negreiro das Américas, não seria diferente. Em pelo menos 4.238 viagens chegaram a seu porto 1.214.036 africanos escravizados em mais de 300 anos do comércio de gente. Após ancorar na Baía de Todos-os-Santos as embarcações eram visitadas pelo professor de medicina e cirurgia, o cirurgião da Câmara e algum vereador. Os responsáveis pelo exame e diagnóstico das condições sanitárias, quando identificavam moléstias contagiosas nas embarcações, faziam o pedido de cumprimento de quarentena dos doentes. Diferente do que conhecemos hoje com a pandemia da Covid-19, e seguindo uma lógica de comércio, aqueles que não apresentavam sintomas eram desembarcados e vendidos o mais rápido possível.

A palavra "quarentena", derivada de quadraginata e, também, do termo italiano quaranta, remete ao período de 40 dias em que os doentes ficavam resguardados em navios ou lazaretos para o controle de infecções contagiosas. Segundo o padre Raphael Bluteau, primeiro dicionarista da língua portuguesa, no século XVIII, aqueles “separados da mais gente, fazem quarentena em suspeitas de peste, ou porque realmente estão infectados deste mal”. No fim daquele século, Luís dos Santos Vilhena registrou, também, a existência da vintena, período de 20 dias de reclusão dos adoentados antes do desembarque.

Durante o período de quarentena, quando necessário, o médico e o cirurgião faziam novas visitas às embarcações, retirando os sadios e mantendo os que permaneciam adoentados. Foi o que aconteceu com a embarcação Nossa Senhora do Rosário e São Gonçalo que ao chegar ao porto da Bahia, em 15 de fevereiro de 1724, vinda do Calabar, seguiu para quarentena após a primeira visita. Depois de uma nova visita constatou-se que as doenças manifestadas na embarcação não eram contagiosas e, assim, a tripulação junto com os 315 africanos escravizados puderem desembarcar na cidade.

Como se vê, as condições da medicina nem sempre eram precisas num primeiro momento, requerendo uma nova análise como se verifica no caso do navio Nossa Senhora da Piedade, chegado à Bahia em 26 de fevereiro de 1732. De acordo com o registro feito em ata pelo médico do Senado da Câmara de Salvador, João Álvares de Vasconcelos, e pelo cirurgião Francisco da Costa Franco, a embarcação chegou ao porto com muitos doentes cuja enfermidade não se conseguiu identificar na primeira visita. No entanto, fizeram o pedido de quarentena e em 26 de março realizaram uma nova vistoria, quando constataram que os africanos sofriam de escorbuto, doença causada por falta de Vitamina C e há séculos já conhecida como "mal de Luanda".

Como vimos, quando os funcionários da Câmara Municipal constatavam a existência de doenças nos navios, iniciava-se a quarentena ou vintena fora dos limites da urbe. Conforme registrou Vilhena, dava-se preferência pela Ilha dos Frades ou a ponta de Monte Serrat, na Cidade Baixa. Porém outros espaços da cidade e, até mesmo a embarcação, poderiam ser usados. Voltemos ao período de 1802 a 1829. Das 91 quarentenas registradas nesse tempo, 88% delas ocorreu em Monte Serrat (80). Dez delas ocorreram em sete locais: sítios de Itapagipe, do Garcia, do Rio Vermelho, da Jiquitaia, do rio de São Pedro, do Senhor do Bomfim e nos armazéns do Ramalho. Uma delas realizou-se “no próprio brigue” mas não sabemos para onde ele foi mandado. Outras duas embarcações serviram de espaço de quarentena, a Câmara mandou-as para o Monte Serrat.

Escorbuto, bexigas, sarnas, boubas, magreza (desnutrição), diarreia, infecções nos olhos ou cegueira passageira, jatos e catapora são algumas das principais doenças encontradas. Alguns navios, como a sumaca Nossa Senhora da Abadia (ou Correio de São Tomé), de propriedade do padre Bernardo de Mello Brandão, chegou a Salvador, em 1808, com 173 africanos dos 239 embarcados na África. As doenças acometeram a embarcações em alto mar, deixando pelo caminho 66 corpos ao longo de 38 dias de viagem, entre a ilha do Príncipe e a Bahia. Dos sobreviventes 32 estavam com bexigas e tiveram que fazer quarentena até 25 de março, data da primeira visita. Todos já estavam curados e puderam ser desembarcados. Oito meses depois chegava o brigue Avoador com 573 africanos vivos, 13 deles "marasmados e escorbutados".

Mas o regramento sobre as condições de saúde das embarcações não parava por aí. Quando chegava um navio de longa viagem, toda a comida a bordo, chamada de “torna-viagem”, deveria ser jogado ao mar evitando contaminações em terra. Foi o que se mandou fazer com o bergantim Santíssimo Sacramento cuja "farinha e carne, que se encontrava podre" manda-se lançar ao mar. Ele tinha chegado a Salvador em setembro de 1803, vindo de Angola com escala em Pernambuco. Chegaram vivos 135 africanos dos 161 embarcados na costa africana e foi considerado "isento" de enfermidades pela visita da Câmara.

Para saber mais:

Avanete Pereira Sousa, Poder político local e vida cotidiana: a Câmara Municipal de Salvador no século XVIII, Vitória da Conquista/BA, Edições UESB 2013.

Carlos Alberto Cunha Miranda, A Arte de Curar nos Tempos da Colônia: Limites e Espaços de Cura, Recife, Editora da UFPE, 2017.

Mariana Dourado da Silva, “A necessidade que há na cidade de Salvador de cirurgiões 1750-1751”, In. Anais do VII Colóquio de História das Doenças, UFES, Vitória-ES, 24-24 de outubro de 2019, inédito.

Fontes:

Raphael Bluteau, Vocabulario portuguez & latino: aulico, anatomico, architectonico... Coimbra, Collegio das Artes da Companhia de Jesu, 1712-1728, vol. 7, p. 17. http://dicionarios.bbm.usp.br/pt-br/dicionario/edicao/1

Luís dos Santos Vilhena, A Bahia no Século XVIII, vol. 1, Salvador, Editora Itapuã, 1969 [1802], p. 156.

ATAS da Câmara de Salvador (1731-1750), Salvador, Câmara Municipal/Fundação Gregório de Mattos, 1994, p. 28-29, (Documentos Históricos do Arquivo Municipal, 9.)

Arquivo Histórico Municipal de Salvador (AHMS), Visitas da Provedoria da Saúde (1802-1829).

Arquivo Público do Estado da Bahia, Seção Colonial-Provincial, Portarias, n.º 461 (1722-24).