O Alufá Pacífico Licutan

Amuleto malê com figura cabalística confiscado pela polícia em 1835. Acervo do APEBa

João José Reis

Universidade Federal da Bahia


No bairro de Valéria, periferia de Salvador, existe uma rua em homenagem a um líder espiritual dos malês que se rebelaram em 1835, Pacífico Licutan. Na época do levante, ele foi descrito como um homem idoso, alto e magro. Era nagô, provavelmente de Oyó, pois tinha marcas étnicas características desse grupo. Tinha outras marcas associadas aos iorubás muçulmanos. Licutan, que era escravizado, trabalhava alugado como enrolador de fumo no Cais Dourado e morava no Cruzeiro de São Francisco (atual Centro Histórico) com seu senhor, um médico. Além dessa residência, Pacífico Licutan alugava um quarto com outros africanos ali perto, na Rua das Laranjeiras, onde fornecia instrução religiosa aos seus "parentes" de nação.

O africano nagô sofria de “mau cativeiro”, segundo ele declarou em seu interrogatório. Seu senhor, embora endividado, recusou alforriá-lo por duas vezes, uma delas com dinheiro arrecadado pelos malês. Foi, aliás, por conta das dívidas de seu senhor que Licutan terminou preso na cadeia municipal em 1835. Fora confiscado para ser levado a leilão para que fosse pago o débito de aluguéis do senhor com os frades carmelitas. Isso indica que Licutan era idoso, mas ainda produtivo.

Pacífico Licutan gozava de grande estima, influência e poder no seio da comunidade muçulmana na Bahia e, quiçá, também fora dela. Ele pregava e recrutava novos adeptos ao Islã na Bahia, o que talvez tenha levado pesquisadores a considerá-lo como o líder do movimento de 1835. Um nagô por nome Francisco, em depoimento à polícia, afirmou que Licutan “escrevia esses papeis que foram mostrados neste ato [a insurreição]”. Em outro depoimento, disse que o africano era “grande entre os seus Parentes Nagôs”, e que “quase toda gente Nagô ia visitá-lo [na prisão] e tomar benção, e tinha juntado dinheiro para ele se forrar quando fosse a Praça”.

Depois da confirmação da data para a rebelião, o alufá foi informado de que seria libertado de uma vez, o que teria lugar no final do Ramadã. De fato, numa das primeiras ações do levante, os rebeldes tentaram libertá-lo à força da prisão em que se encontrava, no subsolo da Câmara Municipal. Depois que as forças policiais descobriram os planos dos insurgentes e tentaram invadir o sobrado na Ladeira da Praça onde um grupo destes se reunia, teve início o levante. Deste local, os rebeldes, após uma pequena batalha, seguiram para a Praça Municipal para libertar o mestre malê. Mas a missão falhou. Os africanos foram apanhados entre dois fogos, o dos soldados, que atiravam de dentro do cárcere, e o da guarda do palácio da província – atual palácio Rio Branco –, que atirava do outro lado da praça. Submetido a pesado tiroteio, o grupo rebelde recuou; uma parte seguiu para o Terreiro de Jesus, mas a maioria se espalhou pela cidade convocando os africanos à luta.

Apesar da prisão, o espírito de resistência do velho alufá se manteve. Durante seu depoimento, recusou-se a revelar o nome de qualquer correligionário ou discípulo seu. Ao mesmo tempo, preservou sua dignidade e identidade muçulmana diante de si próprio, do inquisidor e de outros africanos que aguardavam para depor, afirmando chamar-se Bilal, nome carregado de singular simbolismo. Bilal era o nome do primeiro muezim, um negro discípulo próximo do profeta Muhammad. Apesar do insucesso no campo de batalha, a revolta continuava viva no coração de Licutan, ou Bilal, rebelde que havia sido inadequadamente batizado com o nome de Pacífico por seu senhor.


No bairro de Valéria, periferia de Salvador, o Alufá foi homenageado com nome de logradouro, a rua Pacífico Licutã.

Para saber mais:

Luciana da Cruz Brito. Temores da África: segurança, legislação e população africana na Bahia oitocentista. Salvador: EDUFBA, 2016.

João José Reis. Rebelião escrava no Brasil: A História do Levante dos Malês em 1835. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.