CONDE PEREIRA MARINHO

Com a planta do Hospital Santa Izabel em mãos, Pereira Marinho recebe o afago das crianças. Fonte: Fundação Gregório de Matos (http://www.cultura.salvador.ba.gov.br/)

Cristiana Lyrio Ximenes

Universidade do Estado da Bahia - Campus V

O Diário de Notícias, um importante periódico que circulou em Salvador entre 1º de janeiro de 1856 e 30 de maio de 1957, no dia 26 de abril de 1887, participou aos seus leitores, na seção de notícias de óbitos, o falecimento do iminente comerciante Conde Joaquim Pereira Marinho. Acompanhava à notícia uma pequena biografia de tão ilustre negociante da “praça de Salvador”.

Português de nascimento, natural da freguesia do Salvador da Villa-Cova, distrito de Braga na Província de Guimarães, norte de Portugal. Proveniente de uma família “modesta”, era o segundo, dos quatro filhos de pequenos proprietários rurais. Órfão de pai e mãe, teria sido criado pelo irmão mais velho, vigário daquela freguesia. Embarcou para o Brasil com 13 para 14 anos. Ao chegar em Salvador da Bahia, em 1828, registrou-se no consulado de Portugal como “marítimo”, mas aqui chegando, logo se empregou como ‘caixeiro’ em uma loja de fazendas (varejo) na rua dos Cobertos Grande, cujo dono, também Português – Francisco Antonio de Souza Paranhos – mais conhecido como Paranhos.

Esse, talvez, não fosse o melhor momento para chegar em Salvador. Três anos após sua chegada, em abril de 1831, boatos de uma possível recolonização por parte dos portugueses, no pós-independência, circulavam por todas as províncias. A situação apresentou-se muito instável para esses comerciantes, e sobretudo para elite política de origem portuguesa, em sua maioria, que assumia o país.

Na Bahia, não foi diferente. Os ânimos entre portugueses e brasileiros acirravam-se desde a guerra de Independência, em julho de 1823. O clima também era de ódio mortal aos estrangeiros. Poucos dias depois de oito mil pessoas ocuparem o Campo e o Forte do Barbalho exigindo a retirada do Presidente da Província, dos comandantes de armas da polícia e de todos os oficiais portugueses, eis que Paranhos é acusado de assassinar um comerciante baiano. Em meio ao turbilhão de manifestações anti-lusitanas, conhecidas à época como “mata-marotos”, muitos caixeiros assumiram os negócios ou tornaram-se sócios dos seus antigos patrões que foram forçados a deixar a província da Bahia, retornando para Portugal ou se refugiando em outras províncias.

Na manhã do dia 13 de abril, quando o comerciante brasileiro Victor de Castro foi assassinado em frente à loja em que Pereira Marinho era caixeiro, seu patrão foi o acusado da autoria do crime. Perseguido pela polícia e pela turba, Paranhos teve de se ocultar no forro da loja, “de onde numa madrugada, o ainda adolescente Marinho, contando com 16 para 17 anos, o tirou, o pintou de piche e o conduziu até a bordo de um brigue inglês que o levou para a Europa, de onde Paranhos mais tarde para uma das províncias do sul do Império, retornou”. Sentindo-se agradecido com a lealdade do empregado, o patrão “lhe confiou algum dinheiro e ele lá se foi para o Rio Grande do Sul, a iniciar a carreira comercial, enfrentando com todos os perigos e riscos que ela sempre oferecia a quantos nela entravam com o desassombro com que sempre a exerceu”.

Documentos, jornais de época, tampouco pequenas biografias registradas não sinalizam a que atividade ele se dedicou nos quatro anos em que permaneceu no Sul do – país de 1831 a 1835. Apenas seu necrológio refere-se a este período como passado no Rio Grande do Sul, tendo lá “o novo negociante angariado as muitas e valiosas simpatias, que mais tarde haviam de ser, como realmente foram, de máximo proveito ás suas relações e transações comerciais, que, com o tempo, chegaram a tomar o desenvolvimento extraordinário, que todos sabem (...) graças ao gênio eminentemente comercial do Sr. Conde, á sua espantosa atividade e a proverbial segurança e lealdade com que (...) realizou os seus negócios”.

Dono de uma das maiores fortunas do país, o pontapé inicial para construção de sua riqueza foi dado com o contrabando de africanos escravizados. Em menos de duas décadas, constitui-se como um dos maiores traficantes da Bahia e nesse mesmo período também uma das maiores fortunas. Fazia as rotas de Luanda (Angola) e Lagos (atual Nigéria) e já se relacionava com dois dos maiores fornecedores de cativos da África: Ana de Angola e Dominguinhos da Costa da África. Era um dos organizadores das excursões de navios negreiros. Publicava anúncios em jornais informando que seus navios partiriam rumo ao continente africano, angariava pedido de comerciantes e senhores de engenho e colocava a tripulação em alto-mar.

Oficialmente, o tráfico acaba em 1831. Entretanto desse ano até 1850, quando da aprovação da Lei Eusébio de Queiroz, foi o período que mais africanos escravizados foram transportados para o Brasil. Foi neste cenário de proibição que Pereira Marinho fez a base de sua fortuna crescer a ponto de figurar entre uma das maiores da Bahia.

O tráfico de africanos, sobretudo durante a ilegalidade, se tornou o investimento de curto prazo de maior lucratividade no Brasil, entretanto o mais arriscado. Por isso, os ganhos com este negócio proporcionavam um rápido enriquecimento e possibilitavam investimentos em outros negócios menos arriscados. Esse foi o padrão de investimento seguido também por Pereira Marinho. A diferença, contudo, estava na origem do capital empregado em seus negócios. Estes advieram do contrabando de escravos e num espaço de treze anos, aproximadamente, contados a partir de 1837, quando volta para a Bahia e estabelece-se como comerciante desta praça, até o ano de 1850, quando começa a destacar-se na vida comercial da Província; seus investimentos só foram possíveis devido à continuidade nesse negócio. O empréstimo de dinheiro a juros altos, a compra de navios e imóveis urbanos, a compra de monte-mores e execução de hipotecas constituíram-se nos seus principais negócios, além do tráfico.

Em 1856, fundou o Banco da Bahia e anos depois foi um dos maiores acionistas do Banco Mercantil, também adquiriu lotes de ações de outros bancos. Investiu em imóveis; fez negócios com a venda de carne oriunda do Rio Grande do Sul, uma das atividades mais rendosas, na época; comprou a fábrica de tabacos Boa Vista, em Portugal, provavelmente abastecida com matéria-prima do Recôncavo baiano. Como empreiteiro, construiu e explorou a estrada de ferro do Jequitinhonha, entre Bahia e Minas, através de parceria público-privada com os dois estados e ainda a estrada de ferro de Juazeiro. Com a sua firma Joaquim Pereira Marinho & Cia, constituída em 1851, atuou na compra e venda de madeira e investiu também em trapiches. Foi presidente e o maior acionista da Companhia Baiana de Navegação. O seu grande negócio, contudo, foi o de empréstimo a juros, a particulares e ao governo. Ao falecer a fortuna do Conde Pereira Marinho, avaliada em 8 mil contos de reis, correspondia a dez vezes o orçamento anual de Alagoas. No seu testamento, declarou 227 imóveis de sua propriedade, somente em Salvador. Foi um grande benfeitor da Santa Casa de Misericórdia. Empenhou seu prestígio pessoal para retomar a obra do Hospital Santa Izabel; construiu às suas custas um prédio no Asilo dos Expostos (Pupileira) para amamentação das crianças da Roda; fez várias doações pontuais e, ao falecer, legou à Santa Casa 80 contos de reis para a conclusão das obras do hospital, 10 para o Asilo dos Alienados e 10 para o Asilo da Mendicidade.

Ao tornar-se figura de destaque no cenário financeiro da Bahia, Pereira Marinho conseguiria reverter o conceito negativo de traficante e contrabandista que marcara o inicio da sua trajetória, construindo em torno de si uma aura de negociante honrado, fiel aos amigos e protetor dos necessitados. Esta tática parece ter surtido os efeitos desejados pois essa imagem seria reforçada em diferentes oportunidades. Após a sua morte, sua imagem apresentava-se completamente modificada. Nenhuma voz se levantou para recordar negativamente o seu passado. De certo, o tempo contribuíra para tanto, mas, sem dúvida, as atitudes filantrópicas de Pereira Marinho foram primordiais para a reconstrução da sua imagem pública. Isto bem demonstra o final de seu necrológio: “Não sabemos, nem desejamos saber, que em nada isto nos interessa, se o Sr. Conde de Pereira Marinho, prejudicou alguém no correr de sua existência, atribuladíssima nos últimos tempos pelas amarguras da terrível e dolorosa moléstia a que sucumbiu, o que sabemos, e hoje podemos abertamente declarar, é que nas colunas do Diário de Noticias nunca, desde a sua fundação, se abriu uma subscrição a que S. Ex.ª não fosse um dos primeiros a concorrer, sob condição de não aparecer o seu nome.”

Em seu testamento, datado de 8 de maio de 1884, já percebendo que seu fim estava chegando, Joaquim Pereira Marinho acreditava-se um homem honrado. Depois de declarar que não deixava dívidas a quem quer que seja, termina seu testamento com uma profissão de fé e retidão comercial: “com a consciência tranquila de passar para a vida eterna sem nunca haver concorrido para o mal de meu semelhante, e a convicção que a fortuna que deixo foi adquirida pelo meu trabalho perseverante, com economia e honestidade e honradez em minhas transações comerciais, nunca deixando de fazer ao meu semelhante o bem que podia fazer”.

Escravizados, viúvas, órfãs e devedores, certamente, não guardavam nenhuma semelhança com nosso personagem.

Para saber mais:

Cristiana Ferreira Lyrio Ximenes. Joaquim Pereira Marinho: Perfil de um contrabandista de Escravos na Bahia – 1828-1887. Dissertação de Mestrado (História Social). Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal da Bahia, 1998.

Jose Capela. Conde de Ferreira & Cª Traficantes de Escravos. Edições Afrontamento: Porto, 2012.

Luis Nicolau Parés. "Entre Bahia e a Costa da Mina, libertos africanos no tráfico ilegal". In: Giuseppina Raggi, João Figueirôa-Rego, Roberta Stumpf (orgs.) Salvador da Bahia: interações entre América e África (séculos XVI-XIX). Salvador: EDUFBA, CHAM, 2017, p. 13-47.