BARÃO DE COTEGIPE

Fonte: Arnold Wildberger. Os presidentes da província da Bahia, 1824-1889. Salvador: Tipografia Beneditina, 1949.

Felipe Azevedo e Souza

Universidade Federal da Bahia

O voto contra a lei que aboliu a escravidão em 13 de maio de 1888 e, logo depois, a apresentação de um projeto de indenização para ex-proprietários atingidos por ela foram os últimos atos da vida política de João Maurício Wanderley, o barão de Cotegipe. Morreu no começo de 1889, deixando uma biografia repleta de feitos em defesa da classe senhorial, cujos interesses, em sua retórica, eram equivalentes aos interesses nacionais. Cotegipe foi senhor de escravos, mas foi, sobretudo, o escravocrata mais poderoso dos últimos anos do Império.

Herança e casamento foram as bases de sua fortuna. Do pai, grande proprietário de terras, herdou 50 escravizados. Do matrimônio, mais 160. O dote foi pago pelo sogro, o conde de Passé, um dos homens mais ricos da Bahia, senhor de engenhos no Recôncavo. O casamento com Antonia Thereza de Sá Pitta e Argollo foi um bem traçado movimento para estender seus laços de parentesco com uma família distinta por suas posses, tradições e títulos nobiliárquicos.

Segundo Nabuco de Araújo, Cotegipe foi “o homem mais inteligente de sua geração”, e com argúcia teceu desde cedo, na Faculdade de Direito do Recife, uma vistosa rede de alianças. Aproximou-se principalmente dos saquaremas fluminenses, o núcleo duro da ideologia escravista no Partido Conservador. Cronistas destacavam a capacidade de articulação de Cotegipe, que somado à moral aristocrática que encarnava como ninguém, o predestinaram a uma carreira ascendente. Ocupou diversos cargos públicos, primeiro na província da Bahia e depois na Corte, tornando-se um dos principais artífices da manutenção da ordem escravocrata no país.

Foi chefe de polícia da Bahia entre 1848 e 1851. Um jornal abolicionista, tempos depois, afirmaria que foi o período em que “mais navios negreiros ancoraram nos portos de Giquiriçá, Manguinho e outros, despejando nas barbas da polícia os infelizes africanos contrabandeados em face da lei de 7 de novembro de 1831”. De acordo com os dados do site Slave Voyages, nesses anos foram realizadas 79 viagens de tumbeiros com destino à costa da Bahia, desembarcando ilegalmente mais de 28 mil africanos escravizados.

Logo depois, foi alçado ao mais alto cargo do executivo provincial, tornando-se presidente da Bahia. Os relatórios de sua administração apresentam o funcionamento regular de uma estrutura de estado voltada à promoção dos interesses e do bem-estar da classe senhorial. São páginas que registram desde a exploração da mão de obra escravizada em grande quantidade de obras públicas – principalmente na abertura de estradas e em melhoramentos urbanos -, até o investimento do governo na catequização de povos indígenas nos sertões, “raça desgraçada” que, nas suas palavras, deveria ser “domesticada”. Mesmo nas instruções mais banais de sua pena havia afetação senhorial. Incomodava-lhe a “comunhão em que vivem os enfermos” do Hospital dos Lázaros, “sem distinção de pretos e brancos, de escravos e livres, convindo que em sentido oposto sejam preparadas as enfermarias”.

Na década de 1850 foi eleito deputado geral e depois senador. Como este último cargo era vitalício, intercalou a atividade parlamentar com postos em ministérios pelas três décadas seguintes. Em 1854, propôs na Câmara um projeto para proibir o tráfico interprovincial de escravizados. Em discurso carregado de forte tom humanitário evocava os horrores “das crianças arrancadas das mães, maridos separados das mulheres, os pais dos filhos... ”. Não cabe a esse texto examinar se havia dissimulação no pronunciamento de Wanderley, mas fato é que um dos argumentos de defesa do projeto é que o tráfico interprovincial levaria a lavoura nortista à ruína.

Em seus discursos contrários à abolição em 1888, o expediente foi semelhante. Cotegipe perguntava: “qual é a sorte dos libertados, quais os preparativos para que aqueles que abandonarem as fazendas tenham ocupação honesta? Qual é a sorte dos 500.000 ingênuos, que estão sendo alimentados, vestidos e tratados pelos respectivos proprietários em suas fazendas?”. A preocupação, decerto legítima, não se traduziu em qualquer ação de reparação aos escravizados por parte de Cotegipe. Mais compadecido com as perdas dos proprietários, atuou para que o governo emitisse apólices da dívida pública para indenizar os antigos senhores.

Quando a agitação abolicionista se tornou um empecilho real à continuidade do cativeiro, o Imperador convidou o barão de Cotegipe para assumir a presidência do Conselho de Ministros. Nas palavras de Ruy Barbosa, aquele ministério, que comandou o governo entre 1885 e 1888 foi “a intendência geral das senzalas, a feitoria-mór dos feitores de escravos”. O ato inicial de Cotegipe no cargo foi o encaminhamento da Lei dos Sexagenários, mas em formato diferente do apresentado pelos abolicionistas. A lei foi aprovada condicionando a liberdade do escravizado sexagenário à imposição de mais três anos de trabalho ao seu ex-senhor, ou até que ele completasse 65 anos de idade.

À frente do ministério, Cotegipe se notabilizou pela violenta repressão promovida ao movimento abolicionista. Manifestações eram encerradas com grande festival de espancamentos promovidos pelas forças públicas, líderes foram perseguidos e presos e grande variedade de medidas extralegais foram adotadas com o consentimento do barão. Em relação aos escravizados que naqueles anos se engajaram em fugas coletivas das grandes fazendas, principalmente em São Paulo e no Rio de Janeiro, Cotegipe comandou brutais caçadas humanas, convocando inclusive o Exército para atuar na perseguição aos evadidos. Isso gerou grave crise para o regime monárquico. Importantes setores militares expressaram insatisfação em figurar como capitães do mato. Deodoro da Fonseca, punido por contrariar Cotegipe, assinou um manifesto pleno de ressentimento, afirmando que o governo “nos ludibria, arrancando-nos a dignidade de cidadãos armados, para não nos deixar mais do que a subserviência dos janízaros” – em alusão ao exército de escravos dos sultões do Império Otomano. Em 1889, Deodoro chefiou o golpe republicano que derrubou o regime monárquico.

Cotegipe não chegou a ver o fim do Império, mas sabiamente previu que ele cairia assim que a escravidão fosse abolida, um prognóstico que proferiu sem hesitação. O velho Barão sabia bem que a estrutura escravista e a ordem monárquica estavam fincadas sobre as mesmas bases. Bases, aliás, que ele mesmo ajudou a construir.


Na cidade de Candeias, Recôncavo baiano, fica o Engenho Freguesia, que o Barão de Cotegipe recebeu de dote matrimonial. Depois de se tornar engenho de fogo morto, foi tombado em 1944, e em 1971 se tornou Museu Wanderley Pinho (neto de Cotegipe). Está fechado para visitação há 20 anos. Foto: Tatiana Azeviche, Wikimedia Commons.

Para saber mais:

Carla Silva do Nascimento. O barão de Cotegipe e a crise do Império. Dissertação (Mestrado em História) - Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Centro de Ciências Humanas e Sociais, Programa de Pós-Graduação em História, 2012.

Jeffrey Needel. The Party of Order. The Conservatives, the State, and Slavery in the Brazilian Monarchy, 1831-1871. Stanford: Stanford University Press, 2006

Keyla Grinberg. “José Maurício Wanderley”. In: Vainfas, Ronaldo (org.), Dicionário do Brasil Imperial. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002.

Wanderley Pinho. Cotegipe e seu tempo. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1937.

Fontes:

Anais do Senado Brasileiro, 1888, livro I.

João Maurício Wanderley. Fala que recitou o exm.˚ presidente da província da Bahia, dr. João Mauricio Wanderley, na abertura da Assembleia Legislativa da mesma província no 1˚ de março de 1853. Salvador: Typ. Const. de Vicente Ribeiro Moreira, 1853.

João Maurício Wanderley. Fala recitada na abertura da Assembleia Legislativa da Bahia pelo Presidente da Província, o Doutor João Maurício Wanderley, no 1˚ de marco de 1855. Salvador: Tipografia de A. Olavo da França Guerra e Comp., 1855.

O Asteroide – órgão da Propaganda Abolicionista (BA), 8 de novembro de 1887.

Ruy Barbosa. Abolição no Brasil. Discurso pronunciado pelo sr. Conselheiro Ruy Barbosa no meeting convocado pela confederação abolicionista no Teatro Polytheama, a 28 de agosto de 1887 e mandado publicar pelos alunos da Escola Militar da Corte. Rio de Janeiro: Imprensa Mont'Alverne, 1887.

Site: www.slavevoyages.org