IRMANDADE DE TRAFICANTES

São José Resgatado, padroeiro dos negreiros. Fonte: Pierre Verger, Fluxo e refluxo do tráfico de escravos entre o Golfo do Benin e a Bahia de Todos os Santos, dos séculos XVII a XIX. Salvador: Corrupio, 2002.

Carlos da Silva Jr.

Universidade Estadual de Feira de Santana

Do alto de uma colina na avenida Sete de Setembro, que leva ao porto da Barra e é conhecida popularmente como “Ladeira da Barra”, na entrada da Baía de Todos-os-Santos, repousa a Igreja de Santo Antônio da Barra. Sua fundação data do final do século XVI e início do XVII, e homenageia Santo Antônio de Lisboa (ou de Pádua), frade franciscano de origem portuguesa. O complexo arquitetônico da região, e a proximidade desta igreja com outras construções, principalmente com o forte da Barra, dedicado ao mesmo santo, “constitui sem dúvida um conjunto paisagístico de rara beleza”, dizem especialistas.

Além da sua inegável beleza arquitetônica, a igreja também se destaca por ter abrigado uma confraria de traficantes negreiros. Tecnicamente, confrarias ou irmandades são associações de fiéis católicos, leigos, que se reúnem em torno de uma devoção particular. Mas na prática, elas foram muito além disso, tornando-se verdadeiros polos de organização da vida social, fundamentais para entendermos a História do Brasil. Eram, ao fim, espaços de reunião, ajuda mútua e identificação dos irmãos, que se reconheciam membros de uma mesma comunidade de cor ou profissional. Havia irmandades de africanos e crioulos. Mas os homens de negócio da Bahia (relacionados direta ou indiretamente ao comércio de cativos) também costumavam reunir-se em várias irmandades ao redor da cidade, sediadas nas igrejas e ordens terceiras mais opulentas e de maior prestígio. O historiador francês Germain Bazin considerava tais espaços “verdadeiros redutos aristocráticos”. Grupos econômicos específicos tinham suas devoções de preferência, uma ajuda extra no comércio transatlântico de africanos escravizados. É o caso da irmandade dos traficantes.

Há duas versões sobre a devoção negreira na ermida. A primeira indica que Santo Antônio de Arguim era padroeiro dos traficantes, o que teria contribuído para que a igreja ficasse “mal vista”, sobretudo depois do final do tráfico. Segundo o relato reproduzido pelo historiador Sebastião da Rocha Pitta no século XVIII, a imagem de Santo Antônio teria sido retirada por corsários franceses da fortaleza de Arguim, na costa africana, e após sofrer várias depredações, posta em frente ao navio com o pedido jocoso de que os guiasse à Bahia. Em seguida foi lançada ao mar próximo da costa brasileira, na altura de Morro de São Paulo. Porém os franceses enfrentaram uma tempestade e vieram dar na costa de Sergipe, donde foram capturados e encaminhados para a Bahia. Chegando na praia de Itapuã, encontraram a imagem de pé, “como esperando para os conduzir à cidade”. A partir daquela data a Câmara de Salvador passou a render-lhe homenagem com procissão pelas ruas da cidade. Não se sabe exatamente quando Santo Antônio teria se convertido em protetor dos negreiros, mas o grande número de navios batizados em seu nome durante o século XVIII demonstra a popularidade da devoção.

A segunda versão, menos fantástica, relata que a igreja da Barra guardava em seu interior uma imagem de São José (ou São José Resgatado), originalmente sediada no castelo português de São Jorge da Mina, na Costa do Ouro (atualmente Gana, na África Ocidental). Esta foi enviada como presente pelo rei D. João II em 1481 por ocasião da construção do castelo, concluída um ano depois. Durante a tomada do castelo pelos holandeses, em 1637, São José ficou sob o poder das autoridades locais africanas, que teriam passado a imagem de pai para filho. Isso durou até 1751, quando um capitão negreiro atuante naquela costa negociou e “resgatou” a dita imagem (desembarcada na Bahia em 1752), que foi colocada naquela igreja para proteção dos negócios do tráfico. Essa segunda hipótese parece mais crível. Documentos de época também reforçam-na. Por exemplo, a proposta de uma companhia de comércio para o tráfico na Costa da Mina, de 1757, incluía em seu primeiro artigo a imagem de São José como selo da associação com a frase “Ecce fidelis servus” (“Contemple um servo fiel”). E o artigo segundo dos estatutos previa uma procissão anual em homenagem a São José Resgatado, seu protetor, “para ter propício tão grande patrocínio, debaixo do qual crescerão as suas felicidades”. Felicidade dos negreiros, não dos africanos escravizados no porão, vale ressaltar. A imagem do padroeiro dos traficantes de escravos lá permaneceu pelo menos até meados do século XX, quando foi fotografada por Pierre Verger e estampada em seu livro Fluxo e refluxo. Seu atual paradeiro é desconhecido.


Para saber mais:

Ediana Ferreira Mendes, “Festas e Procissões Reais na Bahia Colonial: séculos XVII e XVIII”. Dissertação de Mestrado em História, Universidade Federal da Bahia, 2011.

Germain Bazin, A arquitetura religiosa barroca no Brasil. Rio de Janeiro: Record, 1956, 2v.

Pierre Verger, Fluxo e refluxo do tráfico de escravos entre o Golfo do Benin e a Bahia de Todos os Santos, dos séculos XVII a XIX. Salvador: Corrupio, 2002.

Pierre Verger, Notícias da Bahia – 1850. Salvador: Corrupio, 1999.

https://sanctuaria.art/2015/07/30/igreja-de-santo-antonio-da-barra-salvador-ba/ (acesso em 11 de agosto de 2020).

http://www.culturatododia.salvador.ba.gov.br/vivendo-polo.php?cod_area=5&cod_polo=8 (acesso em 11 de agosto de 2020).

Fontes:

Arquivo Histórico Ultramarino, Conselho Ultramarino, Bahia, Coleção Castro e Almeida, cx. 16, d. 2806-2807.

Sebastião da Rocha Pitta, História da América Portugueza, desde o anno de mil e quinhentos do seu descobrimento até o de mil e setecentos e vinte e quatro. Lisboa: Editor Francisco Arthur da Silva, 1880 [1730].