IYÁ NASSÔ E AS ORIGENS DO TERREIRO DA CASA BRANCA
No telhado do barracão da Casa Branca, símbolos de Xangô identificam o patrono do templo. Foto: Toluaye, Wikimedia Commons.
Lisa Earl Castillo
Doutora em Letras - Universidade Federal da Bahia
A Casa Branca, também conhecido como Ilê Iyá Nassô Oká, é reconhecido como um dos mais velhos terreiros de candomblé da Bahia. Segundo as tradições orais, o terreiro foi fundado depois de uma viagem de retorno à África, lembrada como uma peregrinação religiosa. O presente texto, baseado em fontes primárias, situa tanto a viagem de volta quanto a vida da sacerdotisa que fundou o terreiro, Iyá Nassô, no contexto de eventos geopolíticos no reino iorubá de Oyó.
Durante sua vida no Brasil, a nagô liberta lembrada como Iyá Nassô, fundadora do terreiro da Casa Branca, carregava o nome civil de Francisca da Silva. Não se sabe quando ou como ela obteve sua liberdade, mas em 1824 Francisca da Silva, já liberta e residindo na freguesia de Santana, batizou uma cativa própria, que recebeu o nome de Marcelina. Esta também era de nação nagô e consagrada ao orixá Xangô, com o nome iniciático de Obatossi. Nas tradições orais, ela é identificada como a sucessora de Iyá Nassô na liderança do terreiro.
Francisca da Silva teve dois filhos nascidos na África que também sofreram as agruras da escravidão. Um deles aparentemente veio com ela no mesmo navio negreiro, sendo batizado com o nome de Domingos. O outro, Thomé, chegou anos depois. Um documento sobre Thomé descreve sua nação como nagô oyó, o que nos permite supor que a mãe veio do mesmo lugar. Iyá Nassô não é um nome próprio, mas o título que corresponde à sacerdotisa de Xangô encarregada com os rituais para este orixá, patrono do reino, no palácio do alafin (rei) de Oyó. Esta informação, junto com outras sobre os eventos que aconteciam no reino africano naquela época, torna plausível a ideia de que Francisca da Silva ocupava o posto de Iyá Nassô em Oyó.
O período aproximado da vinda de Iyá Nassô para a Bahia pode ser deduzido por meio de documentos sobre o filho Thomé, batizado em novembro de 1824. Sua carta de alforria, emitida seis anos depois, o descreve como “ainda moço”, o que indica que era relativamente jovem. Isso coloca seu nascimento, no mais tardar, por volta de 1810. A partida da mãe para o Brasil evidentemente aconteceu depois disso. Era um tempo de alta instabilidade política em Oyó, com frequentes mudanças de governo. A chegada de Thomé à Bahia, anos depois, coincidiu com uma escalada dos conflitos naquele reino e nos vizinhos. Na Bahia, os traficantes de escravos faziam muitos negócios nos portos próximos a Oyó, na região chamada então da Costa da Mina.
Quando Thomé chegou à Bahia, Iyá Nassô já estava liberta, lutando para alcançar a estabilidade econômica. Com tantos cativos chegando das mesmas regiões, reencontros entre pessoas da mesma localidade, cidade e até da mesma família ocorriam com certa regularidade. Por vezes gente já liberta encontrava parentes recém-chegados e conseguia resgatá-los do cativeiro. Thomé, no entanto, não teve essa sorte e foi comprado por um militar branco. Talvez sua mãe soubesse da chegada do filho tarde demais, ou quiçá não tenha conseguido reunir o valor do resgate. Mas ela acompanhou de perto os passos do filho, colocando para ser padrinho dele o liberto nagô José Pedro Autran, companheiro dela há tempo. Como afilhado do companheiro da mãe, Thomé pôde manter-se próximo dela.
José Pedro Autran não era de Oyó. Nasceu na cidade de Ilexá, capital de Ijexá, outro reino iorubá que fazia fronteira com Oyó. As marcas deixadas por seu povo nas práticas religiosas no Brasil e em outras partes da diáspora iorubá sugerem que o reino foi bastante atingido pelo tráfico de escravos. Em 1832, José Pedro Autran e Francisca da Silva se casaram no rito católico, mudando-se, pouco depois, da sua residência na Rua do Gravatá, freguesia de Santana, para um sobrado na Ladeira do Carmo, freguesia da Rua do Passo. Essa mudança provavelmente corresponde ao evento lembrado nas tradições orais como o momento em que Iyá Nassô se retirou da comunidade religiosa primordial, o chamado Terreiro da Barroquinha: a rua do Gravatá é bem próxima à Barroquinha.
Nessa altura, o casal já gozava de uma posição de destaque entre os africanos libertos da cidade. Eram proprietários de dois imóveis e cerca de dez escravos africanos, muitos deles mulheres nagôs. Uma vez que uma dessas cativas, Marcelina Obatossi, acabou substituindo sua senhora na liderança do terreiro, é provável que outros escravos do casal também participassem do culto familiar a Xangô e outros orixás. José Pedro Autran tinha dezenas de afilhados, a maioria africana. Em muitos casos, o batismo provavelmente marcava, simultaneamente, a entrada deles no culto aos orixás na casa do padrinho.
Muitos dos nagôs recém-chegados à Bahia eram oyós e egbás, a grande maioria escravizada durante guerras que assolavam suas terras nesse período. A presença de oyós é perceptível nos autos da Revolta dos Malês, ocorrida na capital baiana em 25 de janeiro de 1835. A maioria dos líderes eram nagôs islamizados e alguns estavam na Bahia havia menos de uma década. Os anos de 1820 foram um tempo de desestabilização acelerada em Oyó, devido à crescente influência de adeptos do islã, sobretudo depois da morte do poderoso general Àfọnjá (c. 1823), quando sua cidade, Ilorin, caiu sob o controle do califado de Sokoto. Este foi um estado muçulmano vizinho que desde o início do século aumentava seu poder político através de um jihad. Os presos eram vendidos para o tráfico de escravos.
Após a Revolta dos Malês, centenas de africanos foram presos pela polícia baiana, fossem muçulmanos ou não. Entre os presos estavam os filhos de Iyá Nassô, Domingos e Thomé. Ao revistar a casa da família na Ladeira do Carmo, a polícia encontrou um amuleto contendo escritos em árabe. Para piorar, vizinhos da família delataram as cerimônias de Xangô, confundindo-as com reuniões para planejar a rebelião. Na denúncia, os vizinhos reclamaram de grandes reuniões de pretos de ambos os sexos, nas quais as pessoas usavam roupa branca e dançavam e cantavam na língua nagô. Nesses encontros, os irmãos usavam muitos colares e em cima de sua roupa colocavam panos vermelhos – a cor preferida de Xangô. Thomé e Domingos foram condenados a oito anos de prisão, mas sua mãe, Francisca da Silva, apelou para que as sentenças fossem transformadas em deportação para a África, afirmando que ela os seguiria para nunca mais voltar.
Comutação da pena de Thomé e Domingos em deportação.
Correio Official, Rio de Janeiro, 09/06/1836, Ed. 127, vol. VI, fl. 1.
No rescaldo da rebelião, quase duzentos outros réus foram deportados para a Costa da Mina. Ao mesmo tempo, diante de novas leis discriminatórias contra a população africana liberta, cerca de mil outras pessoas, muitas delas nagôs, retornaram ao continente natal por iniciativa própria.
O destino de Iyá Nassô e sua família foi atrelado a esse movimento. Quando o pedido de substituição da sentença foi aprovado, a família começou os preparos para a viagem, vendendo os imóveis e libertando seus escravos, entre eles Marcelina. Em 1837, o casal recebeu passaportes para a África Ocidental, acompanhado por Marcelina e vários outros recém-libertos da família.
Passaportes de Francisca da Silva e sua família para a África.
Arquivo da Cúria Municipal de Salvador (ACMS), Freguesia da Conceição da Praia, Batismos 1815–1824; Batismos 1824–1834; Batismos 1834–1844; Freguesia da Sé, Batismos 1829–1861. Disponíveis em https://www.familysearch.org/ark:/61903/3:1:9392-8G9D-BJ?owc=M7ZR-923%3A369568701%3Fcc%3D2177272&wc=M7Z1-T6K%3A369568701%2C370114901%2C370434101&cc=2177272
Nas tradições orais do terreiro da Casa Branca, a volta à África da fundadora é um elemento central. Pierre Verger, que ouviu a bisneta de Marcelina, a ialorixá Mãe Senhora, contar a história dessa odisseia em meados do século XX, afirma que o destino final foi o reino de Ketu. No entanto, novas evidências documentais e etnográficas revelam que, como tantos outros africanos que deixaram a Bahia após o levante, a família e seus agregados se direcionaram ao porto de Ajudá, como era então conhecida a cidade de Uidá, da atual República do Benim. Lá, conseguiram um terreno, construíram uma casa e assentaram seus orixás.
Dois anos depois, Marcelina retornou à Bahia sozinha. Essa volta é sem dúvida a fonte da memória, registrada por Vivaldo da Costa Lima com base em entrevistas na Casa Branca, de que Marcelina teria “fundado” o terreiro depois de chegar da África. No entanto, outras narrativas orais colocam Iyá Nassô como protagonista principal na fundação. As informações na reclamação dos vizinhos em 1835 deixam claro que uma comunidade religiosa já funcionava no seu domicílio antes da viagem à África. É quase certo, portanto, que a atuação de Marcelina depois de sua volta, embora crucial, não tenha significado a fundação do terreiro, mas o ponto de partida de sua renovação e reorganização em um novo local na cidade.
Para saber mais:
João José Reis. Rebelião escrava no Brasil: A história do levante dos malês em 1835. 2a edição revista e ampliada. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
Lisa Earl Castillo. “A ‘nação ketu’ do candomblé em contexto histórico: subgrupos iorubás na Bahia oitocentista”. In: Reginaldo, Lucilene e Ferreira, Roquinaldo. África: margens e oceanos. Perspectivas de história social. Campinas: Editora Unicamp, no prelo.
Luis Nicolau Parés e Lisa Earl Castillo. “José Pedro Autran e o retorno de Xangô”. Religião & Sociedade, 35 (1), 2015, p. 13–43.
Pierre Verger. Os libertos: sete caminhos na liberdade de escravos da Bahia no século XIX. Salvador, Corrupio, 1992.
Robin Law. The Oyo Empire, c. 1600-c. 1836: A West African Imperialism in the Era of the Atlantic Slave Trade. Oxford, Clarendon Press, 1977.
Samuel Johnson. The History of the Yorubas. Lagos, Church Missionary Society Press, 1966 [1921].
Fontes:
Arquivo da Cúria Municipal de Salvador (ACMS), Freguesia da Conceição da Praia, Batismos 1815–1824; Batismos 1824–1834; Batismos 1834–1844; Freguesia da Sé, Batismos 1829–1861. Disponíveis em https://www.familysearch.org/ark:/61903/3:1:9392-8G9D-BJ?owc=M7ZR-923%3A369568701%3Fcc%3D2177272&wc=M7Z1-T6K%3A369568701%2C370114901%2C370434101&cc=2177272
APEB, Seção Colonial e Provincial, Livro 5883, Registros de Passaportes, 1834-1837, fls. 200v-201v.
Correio Official, Rio de Janeiro, 09/06/1836, Ed. 127, vol. VI, fl. 1.