João José Reis
Universidade Federal da BahiaNa noite do dia 24 para 25 de janeiro de 1835, um grupo de africanos escravizados e libertos se rebelou, ocupou as ruas de Salvador e durante mais de três horas enfrentou soldados e civis armados. Embora tenha durado pouco tempo, foi o levante escravo urbano mais sério ocorrido nas Américas e teve efeitos duradouros para o conjunto do Brasil escravista.
Os organizadores do levante eram malês, termo que deriva da palavra ìmàlẹ, que significa muçulmano em iorubá/nagô, uma evidência incontornável do papel determinante dos nagôs naquele movimento. A liderança e talvez a maioria dos rebeldes eram muçulmanos, mas africanos de outras religiões também tomaram parte ativa na insurreição. Da mesma forma, embora a enorme maioria fosse nagô, alguns membros de outros grupos étnicos também participaram. Centenas de insurgentes foram às ruas, cerca de setenta morreram em combate e mais de duzentos, numa estimativa conservadora, foram depois punidos com penas de morte, prisão, açoite e deportação.
A maior parte da comunidade muçulmana baiana na época era formada por haussás e nagôs, muitos deles capturados em conflitos de caráter político-religioso no norte da atual Nigéria. Tinham, portanto, experiência como guerreiros. O ambiente urbano facilitou de muitas maneiras o crescimento do islamismo na Bahia. A relativa independência dos cativos de Salvador, a presença de um segmento numeroso de libertos e a interação entre os dois grupos ajudaram a criar uma rede de convívio, proselitismo, recrutamento e mobilização. A essa rede rebelde os documentos da devassa se referem como “sociedade malê”.
Fossem escravizados ou libertos, muitos malês sabiam ler e escrever o árabe, e repassavam seus conhecimentos para os iniciantes. Os que trabalhavam no ganho reuniam-se nas esquinas, ruas, no cais do porto para oferecer seus serviços e enquanto esperavam fregueses ocupavam-se com religião e rebelião. Além de aprender a ler e escrever, além de conversar e rezar, também costuravam abadás e barretes africanos, vestes típicas dos malês. As casas de libertos abrigavam encontros para rezas, refeições rituais, celebrações do calendário islâmico e naturalmente conspirações. Era o que acontecia em um sobrado na ladeira da Praça, onde eclodiu o primeiro conflito do levante. Ali vivia um mestre malê, Manoel Calafate, acostumado a reunir seus seguidores.
A data escolhida para o início da rebelião foi o domingo da Festa de Nossa Senhora da Guia, parte do ciclo de comemorações religiosas da colina do Bonfim. A festa levou para o distante bairro do Bonfim, então periferia de Salvador, um grande número de pessoas, especialmente de homens livres. Boa parte do corpo policial também convergiu para lá. Esvaziada de homens livres e policiais, a cidade se faria presa fácil, assim pensaram os negros rebeldes. Sendo dia de folga, o domingo também facilitava a mobilização dos escravos urbanos.
Mas, a escolha daquela data também foi planejada para acontecer em um momento especialíssimo do calendário muçulmano, na verdade o mais importante: o Ramadã. É possível que naquela ocasião os malês estivessem celebrando uma das festas que precedem o final do mês sagrado, o Laylat al-Qadr, cuja tradução para os idiomas ocidentais é ora Noite da Glória, ora Noite do Poder ou Noite do Destino. Nessa noite Alá prende os espíritos malignos e decide sobre o destino do mundo. Os malês quiseram fazer o levante sob condições rituais favoráveis.
Denúncias chegaram ao conhecimento das autoridades ainda no sábado, dia 24. As forças policiais entraram em alerta máximo; patrulhas foram mandadas a vigiar as ruas e baculejar as casas de africanos suspeitos. Por volta de uma hora da madrugada do dia 25 de janeiro os juízes de paz da Sé e suas patrulhas chegaram a um sobrado de dois andares na ladeira da Praça onde estavam reunidos um dos principais núcleos de conspiradores. Em meio a uma ceia, estavam definindo os últimos retoques do plano da revolta. Quando a polícia adentrou o prédio, os africanos, em um número estimado entre cinquenta e sessenta, saíram agitando suas espadas aos gritos de “mata soldado”. Outro grupo escapou ao cerco pulando o muro do quintal. Uma pequena batalha, a primeira daquela noite, teve lugar em frente ao sobrado da ladeira da Praça.
Em seguida subiram a ladeira para invadir a cadeia pública, localizada no subsolo da Câmara dos Vereadores, para tentar resgatar um de seus líderes, o velho nagô Pacífico Licutan. Não estava preso por rebeldia, mas para ser levado a leilão, e com o valor de sua venda serem pagas dívidas contraídas por seu senhor. O assalto à cadeia falhou. Foram afugentados por soldados postados na praça Municipal. O grupo seguiu gritando "Viva nagô" e outros africanos se juntaram a eles. Um grande contingente saiu do Corredor da Vitória, eram escravos dos comerciantes ingleses ali residentes. Lutaram em São Pedro e Mercês, retornando ao centro da cidade. Na passagem foram atacados pela polícia na altura do mosteiro de São Bento, brigaram com soldados no Terreiro de Jesus, desceram o Taboão para tentar sair da cidade pela atual avenida Jequitaia. No caminho se bateram com a cavalaria de polícia, que os esperava à frente de seu quartel, em Água de Meninos. Ali se deu a última batalha, na verdade um massacre.
A rebelião de 1835 encerrou na Bahia um longo ciclo de revoltas africanas, iniciado com uma conspiração em 1807. Foram mais de trinta, entre revoltas e conspirações. A repressão que se seguiu ao levante levou o terror à população africana. Prenderam, bateram, investigaram e condenaram culpados e inocentes. Foram promulgadas leis que proibiam africanos de adquirir bens imóveis, que previam deportação em massa, que obrigavam senhores a instruir seus escravos “nos mistérios da Religião Cristã e batizá-los”, entre outras de semelhante teor antiafricano. Centenas de libertos resolveram retornar à África para fugir da perseguição. Os que ficaram seguiram sendo vigiados de perto, mas como eram muitos, e muitos continuavam chegando pelo tráfico ilegal, eles conseguiram furar o bloqueio para seguir com suas vidas, inclusive com suas manifestações culturais, com destaque para a religião.
Para saber mais:
Luciana da Cruz Brito. Temores da África: segurança, legislação e população africana na Bahia oitocentista. Salvador: EDUFBA, 2016.
João José Reis. Rebelião escrava no Brasil: A História do Levante dos Malês em 1835. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.