LEI DE 28 DE SETEMBRO DE 1871*

Iconografia alusiva à Lei de 28 de setembro de 1871, com destaque para o Imperador Dom Pedro II e os ministros do Gabinete Rio Branco. Ao centro, mulheres escravizadas e seus filhos figuram passivas e clementes, ladeadas por representações de modernidade e projetos para a Agricultura: o navio a vapor, a locomotiva, a colonização e a imigração europeia.

Alain El Youssef

Universidade de São Paulo

A Lei No. 2040, de 28 de setembro de 1871, também conhecida como Lei do Ventre Livre ou Lei Rio Branco, figura certamente na lista das principais legislações da história brasileira. Fruto de inúmeros debates políticos e sociais que envolveram setores médios urbanos, escravizados, membros do parlamento, senhores de escravos e até mesmo D. Pedro II, ela marcou a primeira resposta do Estado imperial à derradeira crise da escravidão negra, que atingia os últimos bastiões dessa instituição no continente americano – o Brasil e as colônias espanholas de Cuba e Porto Rico.

Ao contrário do que uma de suas mais conhecidas alcunhas pode dar a entender, a Lei de 28 de Setembro de 1871 não incidiu apenas sobre a emancipação dos filhos das mulheres escravizadas nascidos após sua promulgação. Além de conferir plena liberdade a essas crianças – algo que, a depender da vontade senhorial, poderia ocorrer quando elas completassem 8 anos, mediante indenização de 600$000 paga pelo Estado aos proprietários, ou aos 21, após 13 anos de trabalho para o ressarcimento dos senhores de suas mães –, a legislação também incluiu uma série de dispositivos que influíram diretamente sobre as condições de vida dos cerca de dois milhões de escravizados que habitavam o território brasileiro naquele momento. Dos nove artigos que efetivamente a compõem (excluído o décimo, que apenas revoga as disposições em contrário), sete incorrem sobre aqueles que já se encontravam no cativeiro.

A realização da “matrícula de todos os escravos existentes no Império” foi certamente um dos pontos mais centrais da legislação. Vale lembrar que, até a aprovação da Lei de 28 de setembro de 1871, o governo brasileiro não havia obtido êxito na produção de qualquer censo populacional de dimensão nacional, o que resultava em um profundo desconhecimento sobre a quantidade e a composição da população livre e escravizada do país. A matrícula vinha, nesse sentido, para preencher um vazio estatístico que dificultava a aplicação de uma série de medidas estipuladas pela legislação antiescravista aprovada naquele ano.

Entre elas, estava a criação do chamado Fundo de Emancipação a partir de verbas oriundas de impostos, loterias, cotas orçamentárias e doações. De acordo com o Decreto no. 55.135, de 13 de novembro de 1872, que regulamentou a aplicação da lei de 1871, ficou estabelecido que o Fundo seria distribuído entre o Município Neutro (Corte) e as províncias do Império conforme a proporção da população escravizada nesses territórios. Dessa forma, as províncias que concentrassem mais cativos receberiam uma parcela maior do Fundo, enquanto as que possuíssem número mais reduzido de escravizados ficariam com uma porcentagem menor do montante. Em ambos os casos, o dinheiro deveria ser destinado à libertação de famílias e de indivíduos: se no primeiro caso foram privilegiados cônjuges de diferentes senhores e casais com filhos, no segundo ganharam preferência mães e pais com filhos livres, mulheres jovens e homens idosos.

Além do Fundo, a Lei de 28 de setembro de 1871 inscreveu duas práticas do direito costumeiro que há muito tempo faziam parte das relações entre senhores e escravos no Brasil. O primeiro foi o direito de os cativos formarem uma poupança (pecúlio), que poderia ser resultado de doações ou de atividades realizadas por eles, como a venda de alimentos cultivados em suas roças ou a prestação de determinados serviços. Essa faculdade esteve profundamente relacionada ao direito de os cativos comprarem sua alforria quando obtivessem “meios para a indenização do seu valor”. Se ambas as práticas eram difundidas desde os tempos coloniais, sua transformação em direito legal impediu que elas continuassem a depender da vontade dos proprietários e, portanto, fossem propagadas como uma dádiva senhorial. Não à toa, esses foram os dois pontos da legislação que mais sofreram resistência dos setores escravistas durante as discussões parlamentares ocorridas em 1871.

Aspecto menos debatido, mas igualmente importante da lei foi a libertação de agrupamentos específicos de escravizados, como os que pertenciam ao Estado imperial e à Família Real, os de “heranças vagas” (ou seja, cativos de pessoas que não haviam deixado herdeiros) e os que tivessem sido abandonados pelos seus senhores. No entanto, assim como os filhos de mães escravizadas, estes não obtiveram uma liberdade imediata. A legislação deixou explícito que sua libertação dava lugar a um período de cinco anos em que eles deveriam permanecer sob a inspeção do governo, responsável por fazer com que eles arrumassem um contrato de trabalho, sem o qual corriam o risco de serem empregados em estabelecimentos públicos.

Foi, portanto, sob o signo da moderação e do gradualismo que a Lei de 28 de setembro de 1871 procurou ser a palavra final do Estado imperial sobre a emancipação dos escravos. Cálculos feitos por historiadores indicam que, a depender dessa legislação, o Brasil teria entrado na década de 1930 – a mesma que acabou consagrando a conquista legal de boa parte dos Direitos Trabalhistas – com a escravidão ainda em vigor em seu território. Algo que não ocorreu graças à resistência de abolicionistas e escravizados. Ambos os grupos se valeram, cada um a seu modo, de alguns dispositivos da lei – tanto os que foram largamente aplicados (caso do direito ao pecúlio e à compra da alforria) como os que tiveram pouca eficácia (caso do Fundo de Emancipação) – para minar as bases do cativeiro e acelerar o processo de emancipação. Dessa maneira, tanto em seus sucessos como em seus fracassos, a Lei de 28 de setembro de 1871 acabou conformando parte considerável do campo de possibilidades sob o qual setores abolicionistas e escravistas atuaram nas quase duas décadas que separaram a libertação do ventre da promulgação da Lei Áurea, em 1888.

Leia mais

Livros

CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na Corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

CONRAD, Robert. The Destruction of Brazilian Slavery, 1850-1888. Berkeley; Los Angeles; London: University of California Press, 1972.

COSTA, Emília Viotti da. Da senzala à colônia. (1ª edição 1966). São Paulo: Editora Unesp, 1998.

NEEDELL, Jeffrey. The Party of Order: the Conservatives, the State, and Slavery in Brazilian Monarchy, 1831-1871. Stanford: Stanford University Press, 2006.

YOUSSEF, Alain El. O império do Brasil na segunda era da abolição, 1861-1880. Tese de Doutorado: FFLCH-USP, 2019.


Legislação

Decreto no. 5.135, de 13 de novembro de 1872. In: Collecção das leis do Imperio do Brasil de 1872, tomo XXV, parte II, pp. 1053-1079.

Lei no. 2.040, de 28 de setembro de 1872. In: A abolição no parlamento: 65 anos de luta (1823-1888) – volume 1. (2ª edição). Brasília: Senado Federal, 2012, pp. 525-530.

A rua 28 de setembro também é conhecida como rua do Tijolo. Fica no Pelourinho, centro histórico de Salvador.

*Nota da equipe editorial: Os verbetes do Projeto Salvador Escravista são dispostos no site a partir de categorias. Eventualmente, a categorização pode soar um tanto arbitrária, diante da complexidade dos verbetes. Este é o caso da Lei de 28 de setembro de 1871, que poderia ter ser sido inserida entre as "homenagens reparadoras", visto que ampliou as possibilidades de liberdade da população escravizada. Ao fim, o verbete foi incluído entre as "homenagens controversas", dado o seu caráter protelatório e o viés senhorial de sua escrita. De toda a forma, essa ambivalência da Lei está presente no texto.